NÃO QUEREMOS NOS INTEGRAR?


Passei o dia na faculdade, mais concretamente a de Letras da nossa famosa Universidade do Porto. É quase sempre assim, nos dias da semana. Luto contra a preguiça e tento ser a Aly adulta e coordeno e oriento a Aly louca que quer deixar algumas coisas para depois, pois está cansada e há justificativa para tal.
Ora, é certo que na maioria das vezes a Aly adulta vence e consegue liderar este corpo que já anda farto do inverno e da chuva do Porto, que mal começou. A verdade é que já ando nestas terras portuguesas há quase 5 anos e nunca me contento com este tempo e com esta temperatura, sempre reclamo. O prometido sempre foi, estudar arduamente de manhã, pesquisando para a tese e escrevendo a mesma, e à noite bora lá nos meter no trabalho, porque é disto que é feita a vida, de trabalho. Comecei a trabalhar há uns meses e a verdade é que tenho gostado da experiência, tem sido uma mistura de algo bom e mau, uma sensação única, recebo dinheiro vendendo a minha força de trabalho, sou uma participante ativa deste sistema, compro e vendo, e a minha força está no meio desta "troca".

Hoje foi um dia em que eu parei um bocado e pensei na forma como é difícil, para nós estudantes estrangeiros, mais concretamente negros e não nascidos em berços de ouro, convivermos, socializarmos e estarmos ativos naquele que é o processo de integração na universidade, por diversos motivos sociais. Não seria a Aly a pensar e a escrever se não abordasse "questões sociais"...Estamos todos integrados em uma sociedade, ou melhor, deveríamos todos estar integrados como deve ser.

Falo da minha experiência e da experiência de uma amiga também Africana. Partilhamos uma casa com mais outras colegas Portuguesas, foi uma época feliz e muito intensa, que só hoje, numa pausa que decidi fazer no estudo para beber um chocolate quente, que a analisei enquanto algo que pode vir a explicar a dificuldade de muitos de nós, no que toca ao processo de integração dentro da sociedade Portuguesa.

Um dos grandes motivos desta falta de integração que me veio à cabeça, é sem dúvida, a falta de condições que muitos de nós temos, para ser directa, para colocar tudo preto no branco, falta de dinheiro e base. Quando falo da base, falo da base que não conhecemos, mas que se tornou gradualmente necessária, com o passar do tempo, enquanto conhecemos as unidades curriculares, as temáticas e presenciamos as intervenções dos nossos colegas. Um à parte para falar da minha experiência pessoal: nos primeiros dias de aula eu sentia vergonha de fazer parte de uma turma como a que fazia, e sentia ainda mais vergonha quando um dos meus colegas intervinham. Adorava as frases bonitinhas, muito bem ditas, com palavras que desconhecia, e lá ia eu com o telemóvel entre as pernas procurar o significado no google ou simplesmente anotava no caderno, pesquisava depois e decidia usar nos meus próximos discursos e nas minhas próximas intervenções.
Continuando, há muita falta de base, chegamos aqui com um despreparo enorme, não sabemos muito bem o que fazer e nem o que dizer por vezes. Não temos nenhum tipo de incentivo no que toca à pesquisa, ninguém nos incentiva e nos encoraja a procurar algo mais, bastava saber a matéria da prova e estava tudo bem.

Tive vários professores, mas de dois eu não me esqueço nem que venha a ter amnésia:  Maria de Lurdes Cardoso (professora de História) e Raimundo Lopes (professor de Língua Portuguesa). Estes dois seres humanos foram os que me mostraram que eu realmente precisava saber mais...Estes dois grandes professores me mostraram que para eu existir, teria de lutar e saber mais, era uma questão muito além de um 18 na prova ou uma intervenção bonitinha e ensaiada. O professor Raimundo foi um dos principais responsáveis (além do meu pai) da minha decisão de seguir Relações Internacionais e hoje orgulho-me em poder trocar poucas palavras com ele pelo messenger e dizer que consegui, mas que ando a trabalhar por mais, e em 2019 terei o meu grau de mestre. É certo que nem todos tiveram a sorte de ter professores que incentivam, ensinam e dão asas aos sonhos.

A nossa falta de vontade, (devido à falta de incentivo) pela procura de outras verdades, ideologias, soluções e causas científicas (principalmente), é ainda mais visível quando hoje, em 2018, Cabo Verde tem vários jovens formados aqui fora com medo de se integrarem no sistema, com medo de voltarem e com medo de questionarem as verdades e realidades ditas razoáveis e "sob desenvolvimento". Os jovens que nunca saíram de lá por falta de oportunidades, não são incentivados a procurarem novas soluções e a melhorarem suas realidades, muitas das vezes contentam-se com o pouco e isto acaba por se tornar algo assente na cultura e um brinde da nossa famosa história que até hoje é omitida.

Voltando à minha amiga Africana, (peço desculpas pela demora), ela teve uma dificuldade enorme em conviver com os outros, porque simplesmente não tinha dinheiro para estar onde os outros queriam estar, para ir onde os outros gostariam que ela fosse. Eu estive, durante muito tempo, a insistir com ela no que toca às saídas e aos passeios...Não era e nem sou muito de sair, já me vi em situações que tive de optar por ficar em casa para ter as continhas em dia e poder ter sempre a cabeça levantada, disto não abro mão. É verdade que no início ficava preocupada com os meus colegas portugueses que admitiam ter só 5 euros nas contas bancárias...Eu pensava em coisas do tipo "como é que eles vão comer?", "como é que eles vão pagar a renda?"...Eis o motivo pela qual a nossa experiência conta muito na forma como olhamos o mundo...Depois descobri que os pais deles estavam sempre por perto, faziam comidas e metiam em tigelas enormes. Tinham comida para a semana toda, tinham a renda paga e muitas vezes nem sabiam quanto era...Os 5 euros afinal eram só para as sangrias no pingo doce.

Como não sou nenhuma anormal, tinha dias que apetecia sair, chamava esta tal amiga, e só recebia "Não"...Cansei-me deste "Não, não quero" e revoltei-me...Hoje, se estiveres a ler isto, peço desculpas, eu não era suficientemente madura para perceber o que escondias por detrás deste "Não quero" e o que realmente este "Não" representava.

Uma mistura de "quero, mas não posso". No segundo semestre, uma clara e evidente vontade de participar, mas um forte sentimento de receio por ser tarde demais. Tarde demais para sair e fazer parte dos grupos, grupos estes formados, fechados e selados...Tarde demais para os jogos, para aprender as músicas da praxe, para rir e perceber as piadas e as situações engraçadas que evidentemente se passaram no primeiro semestre e são laços que unem dois ou mais tontos perdidos na faculdade. Coisas "simples" que são perdidas, a bolha aumenta e a vontade de sair dela diminui. É claro que a falta de base e dinheiro actua de muitas outras formas e em outras partes da vida de um jovem universitário, mas a verdade é que ao ouvir e analisar certas conversas baixinhas na biblioteca que uma hora ou outra são iniciadas e rapidamente silenciadas pelo "Chiuuuu" da pessoa mais "chata" e correta da biblioteca, só pude pensar nestas coisas simples e consideradas, muitas da vezes inúteis para a vida de uma pessoa que se encontra perdida.

Vi tudo isto a acontecer, várias vezes me senti perdida e excluída, mas tentei me encontrar, só que a minha colega não...Ela dava continuidade a uma luta interna, passou a ter raiva e alimentou um desprezo por tudo aquilo que não percebia e por tudo aquilo que não fazia parte. Se esta revolta é natural? Depois de dois goles de chocolate quente, creio que sim!

Sobre política e políticas? É impossível eu não entrar por aí. As bolsas que vários estudantes Cabo-Verdianos recebem são sinónimo de miséria. Como pode um estudante ter uma vida social digna se recebe menos de 300 euros por mês para viver em uma cidade como o Porto em que as rendas dos quartos estão cada vez mais altas? Falo de coisas simples e necessárias para a construção de um círculo de amizade e amparo. Saímos de uma realidade, muitos foram excluídos devido à desigualdade social em Cabo Verde, e aqui é mais intenso e a exclusão ocorre de maneira mais violenta.

Os últimos pensamentos que tive ao beber os últimos goles de chocolate quente foram simples e se resumem basicamente em uma só frase: Quando o governo se preocupa em investir na educação, o governo dá asas ao jovem, em muitos países, asas não fazem bem, voar longe e mirar o objectivo não favorece os políticos corruptos e preocupados em eternizar o bem-estar dos seus que são alguns da elite, nunca do povo.


Bem, depois disto, tive que voltar ao meu estudo.

Navvab A. Danso

Comentários

  1. Aly, será que essa tal amiga sou eu? É que identifiquei me tanto na tua história como na dela. Falta de base e dinheiro, tantas vezes senti me inferior na dala de aulas, dizia para mim, meu Deus esse curso não é para mim, vou desistir! Tantas vezes neguei convites de colegas para saidas noturnas e jantares e almoços por falta de dinheiro, ou para economizar ao máximo, isso que dificulta ainda mais a nossa integração, ou talvez quando temos o azar de calhar os preconceituosos na turma! Mas nós somos fortes os nossos sonhos são maiores que todas ad adversidades.

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    1. Partilhamos vivências e acabamos por deparar com dificuldades semelhantes e sim, somos muito fortes e os nossos sonhos são enormes. Com fé, foco e força conseguimos tudo. Um beijinho Mariana :)

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  2. Assinado: Mariana Santiago 😂😂😂😂😘😘😘

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  3. O que tens escrito Aly é igual com que eu passo também. Vim de Guiné a pouco tempo e estou no meu primeiro ano de Ciência Política e Relações Internacionais na Nova de Lisboa. Essas experiências parecem comuns à todos nós que vieram de fora principalmente de África

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    1. Olá Bruma! Eu espero que a tua caminhada seja intensa e cheia de aprendizado. Infelizmente passamos todos por maus bocados e situações que nos afastam e nos fazem sentir fracassados. Desejo-te toda a sorte e espero que consigas ultrapassar tudo, e que os textos por cá te inspirem um pouco mais :) Abraços!

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  4. A preta Aly...Como inspiras-me! #força na tua caminhada, pois 'só quem luta vencerá'.

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    1. O meu coração fica cheio de alegria só de saber que ando por aí a espalhar amor e inspiração <3 :) Um abraço enorme minha linda!

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  5. Navvab, gostaria de ter te conhecido mais, conversadp banalodades e asperezas da vida de estudante da UP. Deixo aqui meu abraço sem jeito e odesejo que trilhes caminhos iluminados e merecidos, voando nas asas dos sonhos.

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    1. Pena ter visto este comentário só agora, meses depois, mas deixou-me muito feliz! Um abraço e muita alegria :)

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